Quando o futebol mostra seu pior
Eu amo futebol. Não sei precisar quando nem como começou, mas há pelo menos uns 18 anos, mais da metade da minha vida, acompanho com afinco. As vezes passo dias inteiros apenas assistindo programas relacionados ao assunto e/ou a jogos. Assisto desde jogos do meu time até jogos da segunda divisão da Inglaterra com gosto. Me lembro que durante a Copa de 2014 acordava cedo e via tudo que possível, inclusive jogos aleatórios, tipo Coreia do Sul x Argélia (baita jogão, por sinal, lembram?). Tenho uma respeitável coleção de camisas de times, bem como tenho pelo menos um time favorito por estado, e em cada país onde há tradição no futebol. Enfim, eu amo futebol.
Até curto outros esportes, de uma forma geral. As vezes me pego acompanhando outras modalidades, mas é só tenha essa paixão por esse esporte. E costumo dizer que futebol é muito mais que esse esporte, ele transcende barreiras. Não gosto de tachar como religião ou qualquer outra coisa clichê. É algo único. Incomparável. E é mesmo bonito tudo que o futebol pode fazer. Pode parar guerras, até. Levar alento a povos que sofrem. Futebol pode salvar.
Porém, nada é perfeito, é verdade. E como o futebol é incrível, atinge patamares altíssimos, o seu lado ruim é proporcionalmente terrível. Nessa semana, dois fatos me lembraram sobre esse lado ruim.
O primeiro fato foi protagonizado pelo técnico do Internacional Guto Ferreira. Após uma vitória polêmica de sua equipe que vem tendo atuações abaixo do esperado na série B, a repórter Kelly Costa, da RBSTV questionou o treinador a respeito da falta de pontaria da equipe, da seguinte forma: "Você acha que é só mérito dos seus adversários a bola não entrar, ou você reconhece uma falha técnica no teu time?". É claro que um treinador, bem como qualquer um envolvido com uma equipe que não atravessa boa fase e vem sendo criticado, costuma estar de cabeça quente nessas situações pós-jogo, especialmente depois de um jogo tenso como esse, vencido com gol polêmico no minuto final. Esse tipo de pergunta, que pode ser interpretado como um tipo de alfinetada, causa reações impensadas.
Entretanto, a resposta de Guto foi bem simbólica: "Desculpe, eu não vou fazer essa pergunta a você, porque você é mulher e talvez não jogou. Mas a situação, de repente, de ter praticado um esporte, todo atleta sob pressão, ele tem a dificuldade de ter o foco no lance final. E ele trabalha contra a confiança dele também. E ele acertar pra ter a confiança. Então eu ia fazer uma pergunta pra você, (...) se você já jogou pra perceber essa situação ”. O público mais conservador, aquele que diz que o mundo tá chato e que de tudo se faz mimimi, diria que essa foi uma resposta normal, que ele teria dado a qualquer jornalista, independente do gênero, já que muitos realmente não jogaram e falam sem ter vivido aquela experiência. Há ainda os mais extremos que diriam que uma mulher realmente não entende a situação, já que não joga futebol e entende daquilo de forma muito superficial.
Porém, aí que está o problema. Essa resposta dificilmente teria sido dada nesse tom a um repórter. 70% de sua resposta foi ok, adequada à pergunta. Mas os 30%, que representam as primeiras e últimas palavras, arruinaram todo o resto.
O machismo na nossa sociedade é intrínseco, está arraigado e muitas vezes sequer o notamos se não somos atingidos diretamente por ele. Muitas vezes nem percebemos quando o praticamos. Guto parece ser um cara legal, sempre foi um dos treinadores mais discretos do futebol brasileiro e está em crescente, apesar da má fase no Inter, vem buscando seu espaço já há algum tempo. Provavelmente não deve ser o estereótipo clássico do machista (apesar de isso ser muito difícil de ser apontado de forma superficial).
Digo isso baseado no que o próprio Guto fez logo em seguida a essa entrevista, pedindo desculpas diretamente à repórter na zona mista, e no dia seguinte, pedindo espaço no programa Redação Sportv para desculpar-se, dessa vez, publicamente, não só com a jornalista, como com todas as mulheres. Uma bela atitude, especialmente por ter sido, aparentemente espontânea.
Mesmo assim, sua primeira atitude serviu pra mostrar como o futebol é um ambiente extremamente machista. Vemos isso quando uma árbitra está envolvida em uma partida. Caso ela cometa um erro, ainda que esse erro poderia ter sido cometido por qualquer pessoa, ela será massacrada além da conta. As atletas do futebol feminino são motivos de chacota pela maioria do torcedor brasileiro, mesmo que o investimento seja praticamente inexistente, e elas são cobradas de forma igualitária. O argumento de que o futebol feminino não atrai o público é ridículo, visto que só a família das jogadoras sabem dos jogos. Há muito pouco espaço na mídia e incentivo desde cedo para as meninas. Nos EUA, por exemplo, as escolas e universidades dão as mesmas condições e espaço para meninos e meninas nesse esporte. O resultado é um futebol feminino forte e de igual pra igual com o masculino.
Pra finalizar esse primeiro ponto, o machismo na resposta de Guto é reforçado quando ele responde a mesma pergunta da repórter a um jornalista, homem, sem pestanejar. Ou seja, não foi a pergunta, mas sim quem a fez. Você pode ver Guto pedindo desculpas no Redação, bem como a respostas original à Kelly Costa, no vídeo que se encontra nesse link.
O segundo fato relacionado ao lado mais triste e desagradável do futebol acontecido nessa semana na verdade não foi exatamente um fato e não exatamente essa semana. A jornalista Mariana Monteiro do canal Sportv fez uma matéria incrível na qual procurou algumas daquelas crianças que aparecem naquelas terríveis cenas de violência, infelizmente, tão comuns no futebol brasileiro.
Vou colocar aqui dois links para a matéria. O que colocarei primeiro, na verdade é a segunda parte, mas achei mais impactante começar por essa parte. O link se encontra aqui. (Infelizmente não dá pra embedar, sorry)
O vídeo é bem auto explicativo, mesmo assim eu faço questão de reafirmar o quão intenso é para um pai assistir tais cenas. Independente de gostar de futebol ou não, situações assim atingem fundo. Eu mesmo já pensei muitas vezes em levar minha filha pra assistir a uma partida de futebol no estádio. Me lembro claramente que durante os Jogos Olímpicos de 2016, um dos patrocinadores tinha uma propaganda que aparecia praticamente antes de todos eventos televisionados. Nessa propaganda aparecia uma partida de futebol pelo ângulo da torcida e toda vez que via essa propaganda minha filha lembrava que eu havia prometido, um dia, levá-la a uma partida de futebol.
Infelizmente não foi possível levá-la durante os Jogos Olímpicos, só consegui levá-la pra assistir a um jogo de Basquete em Cadeira de Rodas nos Jogos Paraolímpicos. A experiência foi ótima, nos divertimos muito e os jogos que assistimos que foram muito bons. Minha filha curtiu, bem como todos nós, adultos, que estávamos lá.
Entretanto, depois disso, nunca mais apareceu uma oportunidade realmente boa. Ela gosta de futebol, assim como esportes em geral. No alto de seus 5 anos, ainda não tem a paciência e atenção necessárias para assistir uma partida inteira. Mas gosta de nos ver torcer e sempre faz perguntas e observações pertinentes.
Moro com minha esposa e filha na casa de meu sogro e sogra. Eu e minha sogra somos vascaínos enquanto minha esposa e meu sogro são tricolores. Alice acabou optando por ser vascaína. Uma coisa que realmente veio dela, nunca houve pressão para isso. Acontece que quem mais futebol em casa somos eu e minha sogra (não que meu sogro e esposa não gostem ou não assistam, pelo contrário, gostam muito também, mas nós o fazemos com mais frequência). Dessa forma, ela crescendo nesse meio, acaba tomando gosto naturalmente e segue os exemplos.
Uma coisa que temos aqui em casa é de torcer um pelo time do outro. É como se todos fôssemos vascaínos quando o Vasco joga, e todos somos tricolores quando o Fluminense joga. E se é Vasco x Flu, cada um torcendo pelo seu time sem criticar, xingar ou zoar o outro. Simplesmente não há razão pra isso. Aprendemos a curtir o nosso sem precisar diminuir ou menosprezar o do outro. Isso é tão natural pra ela, que ela sempre fica triste, chateada, quando alguém critica o time de alguém. Por exemplo, nossa vizinha, amiga de longa data da família a quem ela chama de tia, dada a intimidade com a família, torce para o Flamengo, que é rival de ambos Flu e Vasco. Contudo, não podemos criticar o Flamengo, ou ela fazer o mesmo com nossos times, mesmo quando de brincadeira, o que normalmente é o caso.
Alice desde cedo aprendeu que cada um tem seu time e que não cabe a ninguém criticar, tampouco brigar por isso. Toda vez que falamos alguma coisa a respeito de outro time que não o nosso, ela pergunta se estamos falando em tom de piada pois, caso seja, aí sim tudo bem. Dessa forma, a pequena acaba nos tornando pessoas melhores, afinal aprendemos a cada dia com ela sobre respeito e tolerância entre tantas outras coisas.
Nessa matéria da Mariana Monteiro, vimos crianças perdendo essa inocência e tendo destruída essa habilidade de ensinar sobre como ser um humano melhor. Veja aqui essa parte da matéria, a parte que mostra essas crianças nas zonas de guerra das arquibancadas e como isso os influenciou negativamente. Assista aqui nesse link.
Pra um pai, essa reportagem é muito tocante. Para um amante de futebol, é imensamente triste. Pra mim, é quase o fim da esperança. Chorei assistindo a reportagem. Ainda espero, um dia, poder levar minha filha ainda criança a um estádio. Não tenho a pretensão que um dia ela goste tanto disso quanto eu, nem mesmo sei se ela continuará gostando num futuro próximo. Só sei que gostaria que ela nunca perdesse essa coisa linda que ela tem, essa visão esperançosa ante a humanidade. Essa coisa de querer nos tornar melhor, mesmo que sem saber disso. Talvez comece a levando em um jogo festivo, dessas peladas de fim de ano. Um dia, quero realizar um sonho meu, de visitar alguns dos estádios mais icônicos do mundo, como esses citados em um post no blog de uma amiga. Espero poder estar com minha filha em pelo menos alguns deles, pois não quero que esses marginais consigam fazer minha filha perder a fé inocente que ela tem, nem que eu mesmo pare de amar o esporte como eu amo hoje.